12 outubro 2020

[RESENHA] Os Legados de Orïsha #1: Filhos De Sangue E Osso

 


Oi meus amores! Hoje vamos começar a semana falando apenas da melhor fantasia que li em anos, o livro que me arrebatou e me deixou sem chão: Filhos de Sangue e Osso da Tomi Adeyemi lançado no ano passado pelo selo Fantástico da Editora Rocco. Já deixo claro que a resenha tá grande porque precisei contextualizar muita coisa, mas não possui spoiler nenhum, então pode ler sem medo!

Quando a Mãe Céu soprou vida na terra ela gerou filhos deuses e humanos, filhos da mesma mãe, irmãos. Ela repartiu seus dons com os filhos deuses, cada um tomou algo dela e depois compartilhou com a humanidade. A magia corria pelas terras de Orïsha (lê-se Orishá) através dos maji, as pessoas eram abençoadas pelos deuses com dons e habilidades. No começo todos eram assim, mas quando eles perceberam que aquele presente estava sendo corrompido começaram a escolher as almas que receberiam tal dádiva. A pessoa nascia com cabelos brancos impossíveis de se cobrir com tintura e era conhecida como divinal até os treze anos, quando seus poderes acordavam. De acordo com sua ligação com cada deus-irmão a pessoa era portadora de um dom e designada a dos um dos dez clãs.

Aqueles que possuíam afinidade com Oya eram do Clã de Ikú, conhecidos como Ceifadores eles controlavam a vida e a morte. Conectores são maji da mente, do espírito e dos sonhos pertencem ao Clã de Èmí são ligados a Orí, já o Clã de Omi possuem maji conhecidos como Mareadores, aqueles que controlam as águas e cuja deusa-irmã é Yemọjá. Queimadores dominam o fogo, pertencem ao Clã de Iná e a divindade é Sàngó. Maji do ar são os Ventaneiros, do Clã de Aféfé e seu deus é Ayaó. Por sua vez, pessoas do Clã de Áiyé eram conhecidos como Terral ou Soldador nasciam com o dom de controlar o terra ou ferro e tinham afinidade com Ògún. Aqueles que nasciam Ascendedores eram maji do Clã de Ìmọlẹ e sua divindade afim era Òsùmàrè. O Clã de Ìwòsàn era agraciado por Babalúyé como maji da saúde ou da doença e seriam Curandeiros ou Câncer. Maji do tempo tinham como deus-irmão Òrúnmìlà, possuíam o dom do tempo e pertenciam ao Clã de Aríran. Por fim os maji que podiam se comunicar e controlar os animais pertenciam ao Clã Ẹranko e ficaram conhecidos como Dominadores.

Tudo isso mudou com a Ofensiva. Ninguém entende muito bem como aconteceu, mas o rei Saran conseguiu destruir a ligação entre os deuses e os  maji deixando-os sem formas de se defender do massacre que ele planejou. Saran achava que a magia era uma doença e que devia ser extirpada de Orïsha e que como os majis já tinham sido infectados por ela deveriam sumir junto. Foi assim que Zélie e Tzain Adebola viram sua mãe ser morta pelos guardas quando ainda eram apenas duas crianças, começando assim a entender que o mundo era cruel.

O sumiço da magia e a morte daqueles que a controlavam não foi a única mudança que a Ofensiva trouxe. Divinais começaram a serem vistos como páreas sociais e marginalizados, ficando conhecidos como vermes. Já os kosidán, as pessoas sem magia, essas continuaram levando uma vida normal, mesmo que tivessem alguma ligação sanguínea com um divinal, eles ainda podiam viver com relativa tranquilidade, sem medo da violência que poderiam ou não sofrer, mas agora é proibido se envolver com um divinal romanticamente, a mistura entre essas pessoas foi absolutamente proibida.

As coisas começam a mudar quando os comandantes do exército real encontram uma relíquia sagrada que devolve temporariamente parte dos poderes aos maji. O despertar da magia é frágil, mas é tudo que precisa para deixar o rei ainda mais louco, pois a mera possibilidade do retorno da ligação ancestral com os deuses e a consequente volta da magia de forma permanente é motivo para que ele fique ainda mais instável. Querendo comprovar com os próprios olhos ele acaba fazendo uma experiência com uma serva do palácio que também é uma divinal. O que Saran não sabia, é que a divinal era a única amiga de sua filha, a princesa Amari, e que ela assistiu quando ele a matou.

Na tentativa de vingar sua amiga, Amari rouba a relíquia e durante a sua fuga seu caminho se cruza com o de Zélie e Tzain. Os deuses os juntaram para que possam juntos devolver a magia e lutar pelos maji, mas além dos perigos que a jornada para conseguir em fim realizar tal façanha, eles ainda precisam lidar com a perseguição do implacável o príncipe e capitão da Guarda Real, Inan. Nele foram embutidos preconceitos acerca da magia por seu pai, o qual também prometeu que se ele capturasse a irmã nada aconteceria a ela, mas em sua perseguição para preservar o que ele acredita, Inan percebe que as coisas podem não ser exatamente como o pai disse. Aventura, magia e traição te esperam neste livro!

Eu nem sei por onde começar a opinar sobre Filhos de Sangue e Osso. Já falei dele no nosso perfil do Instagram duas vezes até o momento, mas quis trazer essa resenha mais profunda e contextualizar melhor essa história que mexeu tanto e tão profundamente com as minhas emoções durante a leitura e até depois que terminei de lê-lo. A trama criada por Tomi Adeymei é de uma complexidade muito bonita e o ritmo do livro é frenético! Toda vez que achava que ia desacelerar, ela me provava que eu estava errada. Praticamente em todo capítulo há alguma reviravolta de fazer perder o chão. E só posso dizer que amei isso.

Os personagens são muito bem construídos e desenvolvidos pela autora. Cada um tem seu tempo e sofre com suas próprias mazelas. Este livro é narrado em primeira pessoa por três personagens (Zélie, Amari e Inan) o que nos permite entender cada personagem a partir de uma perspectiva bem íntima. Foi simplesmente incrível essa rotatividade durante a leitura e isso só serviu para enriquecer ainda mais o livro e mostrar como a Tomi, sem dúvida alguma, é uma escritora talentosa e criativa.

Zélie é uma personagem sensacional. Mesmo em seus momentos de dúvida, mesmo com todas as coisas terríveis que aconteceram em sua vida, a fé que possui nos deuses é inabalável. Ela confia neles mesmo quando duvida de si mesma. Ela possui uma força e determinação inspiradoras, além de ser alguém lutando por aqueles que estão indefesos diante a tirania de Saran. Amari é tão fantástica quanto Zélie, mas a sua própria maneira. Ela vai descobrindo aos poucos sua força e entendendo que o mundo é muito mais do que aquilo que lhe foi ensinado, que não pode ser reduzida ao que esperam que seja. Sua jornada começa para vingar uma amiga, mas termina sendo por algo muito maior e foi lindo ver a personagem se descobrir assim.

Algumas questões do tratamento da Zélie para com a Amari me incomodaram. Mesmo conseguindo entender as motivações da Zélie, afinal o maior trauma da sua vida está intimamente ligado à família real e uma aliança foi forçada entre ela e Amari, ainda assim, chegou em certo ponto do livro que eu pensava "então amiga, já deu né?", mas conforme fui avançando no na leitura era impossível não pensar que se a mudança na relação das duas acontecesse de forma muito rápida ia ser estranho. Foi algo gradual e muito bonito, no fim das contas.

Tzain é um personagem com quem me senti especialmente conectada. Apesar de não narrar nenhum capítulo, ele é uma presença constante no livro e uma peça fundamental para a história. O personagem tem uma construção bem sólida e seu background torna impossível ficar imune a ele. Inan foi o único que dividiu a minha opinião, em certo momento do livro eu estava odiando, aí depois amando, em seguida descrente com suas decisões absurdas. Ele é controverso principalmente por causa da influência negativa de Saran.

As inspirações na cultura afro-brasileira ficaram cada vez mais claras durante a leitura e eis aqui o motivo que me fez olhar para essa obra em primeiro lugar: representatividade. Eu sou uma mulher branca e me sinto representada em praticamente todos os livros, foi bom ver uma protagonista negra sendo incrível, mas não só isso, é um livro que se passa na África, todos os personagens são negros, alguns com pele mais clara outros de pele retinta. A questão é que isso é muito importante. Em 2019 decidi que ia ler mais autoras negras que escrevessem histórias com personagens negros sendo os protagonistas, porque essa é uma forma de apoiar a representatividade dentro da literatura.

As críticas sociais presentes no livro são impossíveis de se ignorar. Os kosidán possuem privilégios apenas por terem nascido sem a magia, enquanto divinais precisam pagar impostos mais caros e são escravizados e mortos pelo governo. No final do livro a Tomi escreveu um texto muito bonito falando que a sociedade orïshana é um reflexo da nossa própria, onde pessoas são mortas diariamente apenas por terem nascido de uma determinada forma. Filhos de Sangue e Osso nos faz perceber e nos revoltar com o racismo usando uma metáfora e isso é genial.

A tradução desse livro está maravilhosa. A decisão do Petê Rissatti em manter os termos no original em Iorubá foi bastante acertada, mas senti falta de algumas notas de rodapé explicando certas coisas específicas como o esporte praticado por Tzain. Já a revisão não pode ser tão elogiada, apesar de não estar tão desastrosa quanto alguns livros que tenho na estante, há um número considerável de erros presentes para serem ignorados. A edição está muito bem trabalhada, a capa tem aquele soft touch maravilhoso (o efeito de emborrachado) e verniz localizado, já a diagramação é bem simples e confortável. 

O final é espetacular, arrasador e deixa várias perguntas. Quero saber se um tal personagem sobreviveu, o que a morte de outro vai significar. Além disso há repercussões sobre as quais eu não posso falar porque não quero jogar spoiler na cara de ninguém. A questão é que o gancho para Children of Virtue and Vengeance é incrível e se a dona Rocco não lançar logo vou acabar comprando em inglês mesmo para ler.

Título: Filhos de Sangue e Osso | Série: Os Legados de Orïsha 
Páginas: 550 | Autora: Tomi Adeyemi | Tradutor: Petê Rissatti
Editora: Rocco | Ano: 2019

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